segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Bom dia, barata!

Hoje eu encontrei uma barata morta na cozinha. "Deve ter morrido de calor", foi o que pensei. Impressionante como minha voz interior é capaz de fazer piadas. Sabe, é que eu mesma havia pensado há pouco se poderia desfalecer ou mesmo falecer em breve sendo calor a causa mortis. Sei também que as baratas são resistentes ao calor, mas não posso conceber sua morte natural. 

De volta à nada bela surpresa que encontrara na cozinha, sabia que tinha de me livrar do corpo, mas não podia fazê-lo sem trocar de roupa. É intimidade demais desovar uma barata de pijamas. Então, seguindo uma lógica própria e muito particular, troquei-me para chegar ao cadáver. Empunhei uma vassoura e uma pá. Pá em punho, afastei meu braço o máximo possível de meu corpo, esticando o membro apavorada, temendo que a criatura pudesse despertar e sair de sua posição clássica de barata falecida, como que imitando uma múmia. Livrei-me do feio do mundo, jogando-o no lixo. E só agora podia eu viver.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

O que os professores querem

Dia do professor no Brasil

                Gosto de pensar que grande parte da população brasileira sabe, em teoria, o valor e a responsabilidade dos professores como classe trabalhadora. Vejo a participação das pessoas nas redes sociais, que fervorosamente defendem nossa classe, eles dizem: “todo o médico precisa de um professor”, “o professor é o profissional mais importante que existe”, e a lista continua. Entretanto, em todos os níveis sociais -formados de cidadãos que precisam e dependem enormemente desses profissionais- vejo o profissional de educação ser diminuído e menosprezado. Às vezes intencionalmente, às vezes ideologicamente, acidentalmente. Na própria frase a respeito do médico mora uma crença naturalizada de que o médico tem mais status social que o professor.
                Primeiramente, tive de ouvir: “todo mundo sabe que professor ganha pouco, portanto, se você quer ser professor, tem de se conformar com um salário baixo”.  Depois vi colegas professores dizendo que não encorajam seus filhos a seguirem o mesmo caminho. Durante um estágio obrigatório na faculdade, ouvi professores que almejavam desesperadamente sua aposentadoria. Tinham desistido da educação pública brasileira. É claro que sim. Quem pode julgá-los?
                Em contrapartida, há o discurso romântico, daqueles que orgulhosamente exclamam: “o professor trabalha por amor”, “tem que ter dom para ser professor”, etc. A esse respeito, minha humilde opinião é que ambos os discursos nos diminuem e atrapalham. Primeiramente, pasmem: o professor é um profissional tão importante quanto qualquer outro. Tão indispensável quanto o menosprezado gari quanto os portadores de alto status social tais como engenheiros, médicos, advogados. Alguns discordarão disso, porém vejo a sociedade como uma rede de pessoas que precisam umas das outras, e, através dessa perspectiva, todas as profissões são indispensáveis.
                Quando as pessoas insinuam: “nossa, uma moça tão brilhante, poderia ter sido qualquer coisa, foi escolher logo ser professora” sinto uma piedade da qual não compartilho. O professor não é um coitado. Não tenham pena de nós. Lutem por nós. Tivemos a coragem de escolher fazer o que queríamos. Acreditamos. Obviamente, há exceções. Muitos se acomodaram e, como em qualquer classe, muitos odeiam o que fazem. Mas gosto de pensar nos professores como profissionais que aspiram por um país melhor e querem fazer parte dessa mudança. Não queremos fazer caridade. Queremos condições de trabalho. Trabalhar sem medo de nossos alunos, trabalhar com um número que nos possibilite memorizar os seus nomes.
                Recentemente, ao estudar para um concurso público, reli alguns textos pedagógicos sobre o professor no Brasil e quais são suas responsabilidades sociais. Muitos não sabem, mas, além de dominar os conhecimentos específicos, há o papel social do professor enquanto estimulador e figura responsável por criar oportunidades para a formação de cidadãos, seres críticos e pensantes. Amigos, essa é uma responsabilidade enorme! O professor é cobrado como psicólogo, como fonte segura de informação, como exemplo social, como apresentador do mundo, como “tradutor” da realidade. E enquanto eu lia, eu pensava: “caramba, por todas essas funções é só isso que eles vão me pagar?”
                O professor não trabalha por dom. Existem técnicas para que ocorra a aprendizagem, para isso fizemos faculdade. Sim, há aptidão para o cargo, assim como o há para vendedores ou pedreiros. Professor não faz milagre. Precisamos de estrutura, de respeito, de condições de trabalho e de uma lei que nos proteja. Precisamos de pais que digam a seus filhos que nos respeitem, porque, sim, nós somos empregados, mas isso nunca deveria significar que não merecemos o mesmo respeito e cordialidade quanto qualquer outra pessoa. Hoje os pais dizem aos filhos que eles nos pagam e isso de alguma forma distorcida os dá o direito de nos desrespeitar. Eles, que nos pagam, o fazem pelo que temos a oferecer, e deveriam valorizar nosso trabalho. Esse é um problema enorme, que vai muito além da relação professor aluno, tendo a ver com as atribuições de valor em nossa sociedade. A educação tornou-se um produto, como se não fosse fundamental para a vida em comunidade.  
                Precisamos de uma escola que tenha regras reais que ofereçam respaldo e proteção aos professores. Tenho colegas que saíram de sala de aula chorando, que foram ameaçados de morte, vi vídeos de professores apanhando, de profissionais que passaram por situações degradantes. Quando colegas meus dizem que não recomendam a profissão a seus filhos, eu entendo perfeitamente. Não devemos deixar o trabalho nos envelhecer, nos torturar. No entanto, para mudar essa situação precisamos de pessoas brilhantes, pessoas que poderiam ter escolhido qualquer coisa e não por serem heróis ou caridosos, mas por acreditarem em futuro melhor, tenham escolhido a educação. Não podemos acreditar em utopias, mas tampouco podemos desistir da causa.
Todos supostamente sabem como é importante ter profissionais de qualidade na educação. Porém, ao anunciar que sou professora, recebo condolências. Um discurso marcado por preconceito e falta de esperança. Às vezes, confesso que me pego pensando se seria mais satisfeita em outra profissão. Não porque não goste do que faço, mas pela falta de reconhecimento que nós temos. Por esse maldito discurso que sugere que ser professor é uma escolha estúpida. Se depender do senso comum, a classe entra em extinção. Se entrasse, talvez as pessoas percebessem nossa importância, e talvez nos oferecessem condições de trabalho melhores, turmas menores, salários maiores. Tenho esperança de que um dia, quando disser que sou professora as pessoas digam, com sinceridade: “que bacana!” em vez de “sinto muito”.
Podemos dizer que o professor trabalha com amor, mas não trabalha por amor. A escolha da preposição faz toda a diferença. Não trabalhamos por caridade. Vendemos nossa força de trabalho como quaisquer outros profissionais e devemos ser pagos de acordo com as responsabilidades que nos cabem. Queremos sim comprar livros, mas tanto para lazer quanto para estudo. Queremos ir ao cinema, queremos ter uma vida digna, um salário digno. Nada que desequilibre a distribuição de renda nacional, um salário com o qual possamos viver sem muitas preocupações. Que nos pague alguns luxos ocasionais. Queremos o que todos deveriam ter. O gari e o médico.

O ano de 2013 para mim se apresentou com um ano surpreendente. As redes sociais, os holofotes sobre o Brasil, o aumento de renda dos brasileiros e quem sabe o que mais, nos proporcionaram uma população muito mais politizada, que sabe o que quer, que procura saber para onde seus impostos vão, que colabora entre si e que está buscando se informar melhor e reivindicar o que é seu por direito. Uma população que vai para a rua, sem medo de um governo agressivo, desonesto e hipócrita. Uma galera que está saturada de não ter nenhuma política pública de qualidade. Neste dia 15 de outubro, haverá uma manifestação pela educação. Para que no futuro, as escolas públicas nas quais investimos nossos impostos possam servir a nossos filhos com qualidade.  Essa luta é de todos nós, é minha, e por isso eu quero estar lá. Muda, Brasil!

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Yoga e eu

União
Esta é a história de como o Yoga me encontrou. Em 2008 comecei a dar aulas de inglês e essa tem sido minha profissão e parte de minha identidade desde então. Trabalhei em diversos lugares e por isso conheci muitas pessoas.
Em 2012, um dos alunos que tive a oportunidade de conhecer disse que sua esposa precisava de aulas particulares. Eu sabia que ela era professora de Yoga e havíamos mencionado a possibilidade de escambo de aulas. Dei meu telefone e esperei pela ligação dela. Ela não ligou.
Apesar de sentir grande simpatia por ele, não conhecia sua esposa e passou por minha cabeça que ela talvez não estivesse interessada e que ele poderia estar pressionando-a contra sua vontade. Na semana seguinte, ele me perguntou se ela havia ligado, e, quando eu lhe respondi que não, pareceu decepcionado. O mesmo sucedeu por mais uma ou duas semanas, e ele mencionou por alto que ela não ligaria e que seria melhor se eu ligasse. Por sua insistência peguei o número e, creio que na mesma semana, telefonei.
Fiquei um pouco apreensiva, temia que não houvesse afinidade entre nós. Quando atendeu e me apresentei ela foi extremamente simpática e amigável. Combinamos um horário, concordamos em trocar aulas e quando desligamos o telefone, senti uma vibração boa.
Preparei sua primeira aula de acordo com seus objetivos, com vocabulário e expressões que ela poderia usar dentro do universo do Yoga. Tenho quase certeza de que incluí a palavra “knee”- joelho no vocabulário da aula. Mal sabia que ela já havia lido diversos guias de anatomia em inglês e sabia muito mais vocabulário que eu nessa área. Ela havia me falado que seu inglês era básico. Um grande exagero de modéstia. Apesar disso, ela repetiu o vocabulário humildemente, como se a palavra realmente fosse nova para ela, ou se a pronúncia lhe fosse nova. Fui conhecendo seu potencial e suas dificuldades.
Não sabia exatamente o que esperar da aula de Yoga. Não sabia o que era ou como era. Fiz uma pesquisa e até incluí um vídeo em inglês na aula. (Ela detestou o vídeo pois a praticante estava, segundo ela, completamente torta.) Ela colocava a mão no rosto e fazia caretas como se assistisse a um filme de terror. Foi engraçado.
Depois da aula de inglês foi a minha vez. Ela me ensinou movimentos básicos que eram extremamente difíceis de executar. Movimentos que eu nunca havia feito antes, como controlar e levantar os arcos dos pés, por exemplo. E, em pé, parada, eu suava e segurava a respiração tamanho o esforço que eu tinha de fazer para simplesmente alinhar meu corpo e levantar os arcos dos pés.
Devo ressaltar que eu não era sedentária mas estava lidando com músculos do meu corpo que ainda não conhecia, não tinha intimidade e sequer considerava poder controlar.
No começo foi muito difícil. Lembro de suar, sofrer e pensar que era muito chato ficar tentando acordar músculos e mexer ossos e articulações que dormiam há anos.
Depois ficou mais difícil ainda. Aparentemente, quanto maior seu controle sobre seu corpo, mais difíceis serão as posturas que você terá de executar, não por serem posturas mais complexas, mas porque você deverá fazê-las melhor que antes.
Imagine que você deve sentar-se de pernas cruzadas, com as palmas das mãos unidas em frente ao peito e fechar os olhos. Simples, não? Talvez, mas se você está aprendendo Iyengar Yoga e sua professora é uma perfeccionista viciada em alinhamento, vai ser bem mais complexo. Imagine que você deve distribuir o peso do corpo sobre os ísquios, os ossos de apoio que você nunca percebeu que tinha porque nunca sentou-se direito. Depois disso, concentre-se em manter o sacro (um conjunto de vértebras fundidas a quem você não havia sido apresentado antes) alinhado com a coluna lombar e as outras colunas até o topo da cabeça. As escápulas devem ficar encaixadas, o pescoço alongado, as costelas devem ficar perpendiculares ao chão, sem saltarem para fora. Tente relaxar os olhos, os pés e não contrair nada. Esse esforço deverá trazer relaxamento. Não se esqueça de respirar. Só que parece que quando você conserta uma coisa, outra sai do lugar. Respirar é a última de suas preocupações.
Como eu disse, vai ficando cada vez mais difícil, mas o que muda é sua forma de encarar a dificuldade. Passei a ver os desafios como necessários para a saúde do corpo, e passei a nutrir uma grande vontade de evoluir na prática.
Yoga significa união e busca unir o corpo, a mente e o espírito. A princípio, é realmente  incrível como temos pouco controle sobre alguns músculos, como se a mente e o corpo não se conhecessem apesar de morarem na mesma casa. O Yoga os apresenta e os estimula a interagirem entre si, criando oportunidades para que eles se ajudem a evoluir.
Aprendi a ter paciência com meu corpo e a compreender suas limitações. Comecei a buscar o equilíbrio entre se esforçar para evoluir e a respeitar a necessidade de descanso.  Hoje sei que preciso acordar meu corpo, tirá-lo da zona de conforto, tolerar algumas dores para alongar músculos que estavam quase  atrofiados. Descobri que meu corpo faz parte de minha personalidade e de quem sou. Que meus medos, inseguranças e ego estão impressos na forma como me sento, ando e falo. E se mudo a forma como me movo, mudo minha personalidade.


Algumas posturas nos assustam à primeira vista. Tenho medo de ficar de cabeça para baixo, apoiada nas mãos e na parede. Porém, quando me proponho a vencer meu medo, estou trabalhando a minha coragem, minha capacidade de priorizar meu objetivo além do medo.
Qual é a diferença entre o medo de fazer uma postura difícil e o de enfrentar uma situação difícil?  Muitas vezes não sabemos sequer o que nos assusta de fato, e é importante confiar em si mesmo e se permitir arriscar-se.
Em algumas posturas, aprendemos a manter os pés firmes no chão enquanto esticamos as mãos para o céu, buscando o equilíbrio entre o céu e a terra, entre o que se tem e o que se quer, entre o concreto e o abstrato.
Em todas as posturas que trabalham um lado especifico do corpo, trabalha-se o outro lado da mesma forma, e isso nos ajuda a ter paciência, experimentar a oposição e avaliar as diferenças e dificuldades que cada lado apresenta, sem negligenciar um ou o outro.
Há posturas em que olhamos para cima, para os dois lados, para trás, para frente, para baixo, e há aquelas em que estamos invertidos e precisamos reestabelecer todas as referências  de onde estamos e do que estamos vendo. Em algumas posturas ficamos em posição de imponência, coragem, força, em outras assumimos posições humildes e submissas, e percebemos que para aprender qualquer coisa precisamos nos aceitar como ignorantes e ter humildade.
Há posturas que nos relaxam, que nos transformam em pessoas mais flexíveis, mais abertas. Buscamos o equilíbrio, a firmeza, o desapego, a entrega. Sobretudo, em quase todas as posturas, olhamos para nós mesmos e analisamos o que estamos fazendo errado, o que precisamos mudar em nós, como podemos evoluir, e, na prática, começamos a mudar: tentamos ter o peito mais aberto, o olhar mais sereno, o corpo mais relaxado, a musculatura menos dura, mais alinhada, mais equilibrada. Admitimos, de verdade, que temos imperfeições e começamos a trabalhar nelas imediatamente. Buscamos conhecer quem somos e nos dispomos a melhorar o que podemos com paciência, gentileza e aos poucos.
Sexta-feira, dia 5 de abril de 2013, minha professora –que, depois de quase um ano se tornou minha amiga, minha mãe, uma de minhas inspirações- resolveu abrir meus ombros e meu peito. Trabalhamos arduamente, exigindo o máximo que eu podia pedir a meus ombros, ela comentara que meus ombros eram muito fechados, que carregavam muito peso.
Conforme eu ia abrindo os ombros ia ficando vulnerável e pela primeira vez achei que minha professora estava sendo cruel comigo. Comecei a ter várias impressões incoerentes como por exemplo, que ela estava com raiva de mim. Fui ficando sensível e magoada, comecei a me abrir, parei de me defender de tudo e, em Trikonasana (a postura do triângulo), quando abri o ombro esquerdo pela centésima vez comecei a chorar.
Não sabia porque estava chorando, ela me abraçou por algum tempo e depois fizemos umas torções para que eu me sentisse melhor.
Nos ombros carregamos o peso do mundo, de nossas responsabilidades, e creio que algumas defesas. Ela me disse que o caso mais comum era chorar com posturas que abrem bem o peito, pois no peito ficam alojadas mágoas e angústias e que ela conhecia muitos professores, além dela própria, que haviam chorado, geralmente quando a aula era intensa.
Agora sei que chorei não porque abri o peito, mas porque liberei os ombros. Chorei por deixar cair responsabilidades e medos que sempre carreguei comigo, chorei porque o mundo é injusto demais e ainda não consegui mudá-lo. A prática me ensina que esse peso é demais para mim e que tudo bem se eu não carregá-lo.
Por ser uma pessoa um tanto cética sempre soube que jamais uma religião poderia me trazer paz interior e sempre pensei nisso como uma infelicidade. Não sabia o que poderia me fazer evoluir, me mudar, me trazer sabedoria e humildade, me ajudar a ponderar sobre o verdadeiro valor das coisas, me ajudar a ser menos egoísta, a querer mudar. Acho que Deus, meu Karma, o Universo ou o Destino sabiam e trouxeram para mim.


ponte de pés desalinhados
Estou no começo do caminho, mas tenho prestado atenção e tenho aprendido a praticar comigo a mesma gentileza que ofereço àqueles que amo. Percebo que sou um grão de areia que, apesar do tamanho, busca ser melhor para si e para o mundo, e foi assim que percebi que o corpo, a mente e o espírito são uma coisa só. São acessíveis e podem mudar. Perguntei a um amigo (futuro médico) por que o corpo chora. Aparentemente, chorar não tem uma função, é uma consequência, portanto concluo que é nosso corpo falando por nós, é o que sentimos e o que pensamos transbordando para o plano físico.

terça-feira, 19 de março de 2013

Palavras boas para quem merece


Era um bebê de pele branca, grandes olhos escuros e cabelos muito negros. Um guri de sorriso sem dentes, que vinha fácil. Caras de indignação e mau humor às vezes também se firmavam em sua tez expressiva. Sobrancelhas unidas, olhos transbordantes. Transbordavam de alegria e tantas outras emoções efêmeras que um bebê pode experimentar.

Depois foi um garotinho engraçado, com dentes de leite arredondados, cabelinho penteado para o lado e uniforme do flamengo. Os adultos tentavam fotografar enquanto chutava a bola de futebol. Gritavam gol e celebravam, ele era o sorriso da casa, o pequeno rei do jardim da avó, que se tornava gramado, e chinelos marcavam as traves de um gol sem goleiro.

Cresceu mais um pouco, e gostava de atenção e de brincar mais do que de brinquedos. Gostava das pessoas, da tia, das primas que eram obrigadas a fazer tudo o que ele queria, porque eram mais velhas. Reclamava e cobrava seu direito de rei da casa, fazia queixa para a tia, dizia: “briga com elas que elas não querem brincar comigo.” E ela brigava mesmo.

Largou o futebol e abraçou o videogame. Jogava Playstation e se gabava das habilidades que o pai tinha no jogo. E quando alguém gostava de algum brinquedo ou jogo ele oferecia: “Você quer? Eu te dou.” E muito jovem aprendeu a ser generoso sem ninguém ensinar. Ensinava a generosidade a crianças mais velhas sem sequer saber que tal virtude portava esse nome. Sem saber o que era ser virtuoso. Sem intenção de reconhecimento. Se doava por amor. Por querer expressar amor. Por ter nascido sabendo o que muitos passam a vida toda sem aprender: sabia que as coisas materiais não tem valor algum. Sabia sem sabê-lo. Era inocente e livre das correntes que nos prendem às coisas que se compram. Prendia-se aos que o amavam. Mesmo sendo um menino, era muito nítido para ele de quem gostava e quem queria por perto.

Crescia mais e não gostava de ver ninguém chorando. Ia perguntar o que tinha acontecido. Ficava ao lado. Segurava a mão quando lhe diziam que não era nada.
Gostava de ficar com os primos mais velhos, gostava de piscina, de marco-polo, de bola, de frescobol. Perguntava sobre coisas que não sabia.

Adolesceu e formava, aos poucos, as próprias opiniões. E, adolescente, passava a debater em vez de perguntar. De tudo já sabia um pouco, e discordava de si mesmo de vez em quando, o que é muito natural, é claro. Quando não podia ter o que queria, abria mão do que já tinha para alegrar as pessoas que mais amava, como quando, no país do consumo, não conseguindo comprar seu desejado eletrônico, em vez de procurar outra coisa, usou o dinheiro que guardara para presentear seus companheiros de viagem à Disneyworld.

Jovem, experimentava, questionava e ainda questiona. Erra, descobre, se defende, não erra, acerta, quer, como todos, ser reconhecido. Tem uma visão um pouco diferente da que tinha antes sobre as coisas materiais, mas é claro: na vida se aprende a não se dar tudo o que se tem, caso contrário seria um santo  ou um tonto, e pra falar a verdade ninguém gosta de nenhum dos dois.

Espero que ele sinta, sem racionalizar muito, que a felicidade está em amar e receber amor, ter a atenção de quem se ama. Pertencer. Pertencer ao grupo de amigos da escola, pertencer a uma família que daria a vida por ele, fazer parte da vida, parte da foto, parte do churrasco, parte da festa de fim de ano, parte da festa do colégio, do aniversário da prima, do casamento do padrinho, da vida do pai e da mãe, mesmo que essas sejam vidas diferentes. Espero que ele saiba que palavras são muito importantes, que retém muito poder. Poder de consolar, de alegrar, de transmitir o que há de mais belo dentro de nós, assim como o que há de mais sombrio. Felizmente, temos o direito de escolher não falar. No entanto, não falar o que há de belo para ser dito pode ser um grande desperdício de afeto.

Do perdão também se faz a felicidade, e da capacidade de, antes de tudo, perdoar a si mesmo. Somente errando se pode evoluir, se pode fazer uma escolha melhor, se pode acertar. E para evoluir, devemos ser gentis com nós mesmos em relação aos nossos erros. Talvez não pudéssemos fazer nada melhor no momento, talvez não soubéssemos das consequências das nossas ações e por isso deixamos que elas reverberassem.

Gostaria que ele pensasse um pouco em como é bom saber que fazemos falta em algum lugar. Que as pessoas perguntam por nós, que queriam nos ver, que talvez pudéssemos somar ou contribuir para a felicidade de alguém que sente por nós somente amor. Que algumas palavras, sorrisos e principalmente a nossa presença faz diferença para alguém.

Talvez esse não seja um conselho dos melhores, talvez não seja sequer um que eu possa me gabar de seguir mas gostaria de dizer a ele que nunca economize palavras boas para aqueles que mais merecem. Especialmente para pessoas que se  importam com sua felicidade. Palavras vem de uma fonte que dura enquanto estivermos vivos, talvez durem até depois de nossa existência e o que podemos fazer é escolher as melhores palavras para deixar no mundo. Acho que as pessoas ao redor dessa pessoa maravilhosa que ele é talvez mereçam mais palavras, e talvez palavras melhores.

Ele tem um enorme coração, e me orgulho muito de ter conhecido um guri assim, de ter sido obrigada a brincar com ele, e de ter recebido inúmeras ofertas de brinquedos que ele queria me dar e não aceitava para não me aproveitar de sua suposta inocência. Lembro de na época pensar que ele era bobo. Quando a boba era eu. 

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O navio fantasma


Começo esse texto e me sinto um pouco perdida tanto tempo faz que não escrevo. No entanto me parece que não há mais nada que eu possa fazer.


De uma forma bastante misteriosa, hoje, enquanto arrumava e limpava meu quarto, retirei Nietzsche da estante. Um livro que ainda não li, como muitos que comprei e coloquei em fila. Compro livros muito mais rápido do que os leio. No primeiro capítulo deste livro, Nietzsche questiona a Verdade humana e a busca pela verdade. Por que buscamos a verdade? Sei que uns, mesmo confrontados com a verdade buscam a inverdade ou constroem a partir da primeira algo que a justifique ou impossibilite. Quando a verdade lhes é inconveniente, é claro.

Me parece que a Verdade não existe. Como pessoas, podemos somente produzir nossas impressões de supostas verdades. No entanto não posso negar a existência de fatos. Fato é que acordei cedo mas fiquei na cama hoje até 11 horas da manhã. Fato é que nasci no Rio de Janeiro em 1989.

O questionamento de Nietzesche não é novo para mim, mas se encaixou perfeitamente em meu dia e por isso chamo nosso encontro de misterioso, e até de poético. "quem com ela sonha é um tolo" diz ele sobre o nascimento da vontade da verdade. Então por que perguntamos? Qual é o impulso que move alguém a tirar os pontos, abrir a ferida e ver o que há por baixo da pele cicatrizada de um corte antigo?

O que leva mergulhadores à Naufrágios? Recentemente, presenciei uma exumação. Logicamente, foi uma exumação metafórica... Mas é incrível como alguns fatos que aconteceram há muito podem mudar toda a sua perspectiva e algumas opiniões quase cristalizadas. é como desenterrar um morto e somente durante a exumação descobrir que tinha dentes falsos. Segredos que o morto levara para o túmulo mas que havia compartilhado com o coveiro ante-mortem. 

A ignorância é, realmente, uma benção? A exumação que presenciei mudou todo o meu momento presente, e talvez isso prove a importância não da verdade, mas da recuperação de fatos para a construção de minha verdade individual. Quando me questiono se eu realmente queria estar presente no evento, se precisava realmente ver o morto, a resposta me parece muito clara. Se eu não visse o morto, viveria uma verdade bonita mas falsa, e a falsidade nela jamais permitiria que me fosse de fato bela. Então retorno aos conceitos do que é verdadeiro e do que é fato. E me questiono também sobre as decisões que tomaria no presente para lidar com o que me sobrara do morto. 

Obviamente, ver cadáveres não é uma experiência nada agradável e não posso recomendar o evento. Mas também jamais recomendaria àqueles que me são próximos a evitarem exumações ou conversas com coveiros. Exumações geram reflexões e mudanças são para aqueles que estão abertos à mudanças, a giros de 180°. Cadáveres podem ser extremamente desagradáveis e até vulgares.

Talvez, da sua experiência mórbida só reste a vergonha de não ter sabido antes.