terça-feira, 25 de novembro de 2008

O décimo quinto verso

Era uma folha em branco. Não tinha muitos amigos, diziam que ela era vazia. Sentia-se vazia, via-se vazia. Era imaculada no entanto, e ninguém poderia negar isso. Ninguém negaria isso.
O que a cercava era uma grande expectativa, porque nela caberia qualquer coisa. Palavra, imagem, pessoa, máquina, planos, plantas, rascunho... Ela era livre. Vaziamente livre. Podia ser nada, mas isso embasava todas as possibilidades. Possibilidade era melhor, muito melhor que ter uma função específica, previsível e perpétua.
Era melhor do que ser uma crônica ou conto, cheio de adjetivos mal empregados. Não queria ser um desperdício. Queria ser importante, protegida por importância. Como uma foto de alguém morto. Ninguém é cruel com a foto de alguém morto. Mas não queria receber olhares piedosos. Já sonhara em ser poética e efêmera, como o primeiro verso de um poeta, mas sabia que esse primeiro verso teria um destino infeliz: lixo. Porque o verdadeiro artista vê que seu primeiro verso não passa de carbono bruto. Poderia ser o décimo quinto soneto de um poeta experiente, mas não via lirismo nessa opção segura. E a cada segundo de vazio via que não cabia a ela escolher o seu destino. Caminhos são para serem traçados, mas ela não faria escolhas, não era um viajante ou andarilho, estava perdida e presa, presa não sendo, sendo o caminho, esperando. Esperava ser traçada, afinal, estava em branco. Uma carta de amor acaba molhada por lágrima solitária, e morre na beleza da desilusão... Não sonhava esse fim. Queria viver para sempre... Mas ainda era nada. Branco.
Ironicamente, tornou-se amarela ainda estando em branco, nada. Nenhum novo projeto, planta, máquina, palavra ou pessoa de peso começaria em uma folha amarelada, mesmo se em branco. Esperou infinitamente e numa terça-feira nublada viu-se preenchida. Nublado, ameaça de chuva. A criança, presa em casa, riscava com força o giz de cera sobre o amarelado, descontando a fúria da prisão. "Desenha uma casa bem bonita pra mamãe". Então ela seria uma casa... Nada mau, se a menina tivesse talento... Nunca quis ser uma casa de giz de cera, mas era melhor que rascunho... Folha de recados... E pensou na distância do flutuante vazio entre o que ela era e o que seria, quando tocada, seria outra, seria o que levasse do lado de fora..."Toma", e a menina a entregou para a mãe. Não teve tempo de entender o que era antes de ser amassada e arremessada na lixeira, então a voz da mulher se afastou, cada vez mais furiosa, e antes de perder a consciência..."Sou um rabisco".