sábado, 24 de abril de 2010

Adrenalina, medo, realidade e relatividade

Pedro de Carvalho, Méier, RJ. 5:30am.
Estava andando até o ponto de ônibus para pegar o 232, pararia na frente do prédio em que morei durante os dez primeiros anos da minha vida. Pensei no perigo, mas é sábado. Os bandidos ainda devem estar dormindo, de folga. Hoje sonhei que quase tinha sido assaltada. Um homem tentou me abordar, mas o pessoal do taekwondo me salvou. Não pratico Taekwondo desde 2007, 2008. Estranho sonhar com eles. Nos meus sonhos eu sempre travo, fico em choque, a voz não sai... É bem ruim sonhar esse tipo de coisa. Enquanto caminhava mentalizei que nada aconteceria comigo. Um grupo de três pessoas me perguntou alguma coisa e continuei a andar, como na maioria das vezes faço. Depois de alguns segundos percebi que tinham me perguntado as horas. "São 5:35. Desculpa, eu não tinha ouvido, tô com sono..." E ri. Continuei andando até o ponto e eles agradeceram e disseram que já iam me xingar ou pensar mal de mim, sei lá. Porque eu não havia respondido. Andando para o ponto vi um cachorro enorme. Me perguntei o que era aquilo. Deveria ser um São Bernardo, me aproximei mais, o pêlo brilhava e era curto, o rabo era fino e vi que não era São Bernardo coisa nenhuma, era um porco. Um porco enorme, o que ele estava fazendo lá eu não sei. Sei que atravessou a rua e eu ri, porque achei engraçado o fato de a primeira vez de eu ter visto um porco adulto de verdade ter sido no meio da rua, na capital do Rio. Duas mulheres se aproximaram de mim. "Vamos sentar aqui e esperar o ônibus." Fiquei um pouco tensa, mas não me movi. "Você tem horas aí? Que horas são?" Essa das horas está ficando velha, na hora lembrei de um amigo da faculdade, o Felipe. Ele é um doce de pessoa, super educado, e me contou que uma vez perguntara as horas para uma mulher na rua, e ela começara a correr. Eu ri muito. Agora não era engraçado. "São 5:40." Eu respondi, seca. "Chega aqui perto de mim pra eu ver as horas no seu relógio." Enquanto falou tinha um olhar de algo que eu não via há muito tempo. Talvez nunca tivesse visto antes. "Não, eu tô muito bem aqui, são 5:40." Ela estava a um metro de mim, reparei que não carregava nada consigo. A outra mulher não falava nada, nem lembro de seu rosto. Na verdade, esqueci todos os rostos que vi nessa manhã. Ela insistiu. "Vem aqui pra eu ver as horas..." Eu tinha que pegar o ônibus para ir pro trabalho, pensei em esperar naquele mesmo ponto. Só sabia de mais um ponto de ônibus, e então eu sinceramente não me lembro o que foi. Se foi uma voz, um impluso, uma outra coisa. "Corre." Eu saí correndo. Corria pela Pedro de Carvalho e pensei em voltar pra casa, mas não teria tempo de abrir o portão antes que elas me alcançassem... Não! Eu tenho que ir pro trabalho! Os pensamentos voavam pela minha cabeça, eu não sabia se elas estavam vindo atrás de mim, eu não tinha coragem de olhar para trás. Havia pouquíssimas pessoas na rua, e elas não sabiam porque eu estava correndo. Corri até que minhas pernas começaram a doer e eu desacelerei. Começei a andar num ritmo ainda rápido, quase chorando, completamente tensa, mal conseguia respirar. Andei assim por algum tempo. Ouvi passos, olhei para trás e uma delas vinha atrás de mim correndo, segurei a mochila com força e corri, começei a gritar e saiu da minha garganta uma voz que eu não conheci, era rouca, completamente distorcida e arranhava a minha garganta e me assustava, eu gritava "socorro", eu nunca havia gritado essa palavra na minha vida, e o que ela significa afinal? Ninguém veio. Aquele porco era um mau agouro. Eu gritava por socorro, gritava por puro desespero, daqueles bem fortes, puro, antes de refinar. Essência mesmo. Desespero concentrado. Um homem perguntou o que foi, mas quem era ele e o que ele fazia ali antes das seis da manhã? "Estão vindo atrás de mim!" Eu tentei dizer, mas acho que não saiu bem assim, eu não respirava direito. Acho que quando eu começei a gritar ela desistiu, não sei, continuei correndo até o fim da rua, eu não olhei para trás, mas senti que ela não estava mais me seguindo, uma mulher me viu correndo, me perguntou o que havia acontecido e eu disse "quase fui assaltada agora" e ofegava enquanto continuava a correr, perguntei aonde era o ponto de ônibus, ela respondeu. Quando cheguei lá ainda aspirava o ar como se nunca houvesse respirado, e uma outra mulher me perguntou se eu estava passando mal. Disse que quase havia sido assaltada, ela comentou que eu não devia ir até lá, porque era muito perigoso. Eu estava completamente tensa, e quando as pessoas que estavam lá pegaram seus respectivos ônibus eu senti medo por estar ainda mais sozinha. O 260 enfim chegou, depois do que me pareceu uma eternidade. E só então eu começei a pensar nas coisas que eu levava na bolsa. Elas levariam meu Rio Card, levariam minhas chaves e eu não teria como ir pra casa porque a vila so abriria mais tarde e na república as pessoas que moram comigo só chegariam segunda-feira. Levariam o meu celular com todos os meus contatos, meu estojo com os dados do Luiz. A chave que abre o armário do trabalho também. Levariam meu cartão do banco, meus óculos escuros e minha agenda, mas não que eu estivesse ligando muito para nada disso, eu só queria me sentir segura de novo, parar de ter medo. Indo para as barcas um homem tropeçou ao meu lado, e eu por reflexo segurei a bolsa e me afastei para o lado, como um bicho-do-mato mesmo. Arisca. Eu me perguntava quando esse medo ia passar. Queria falar com a minha mãe. Lembro que quando era criança, antes mesmo de nos mudarmos do Rio meu pai me perguntou o que eu faria se viesse alguém na minha direção me fazer mal. Eu lembro de responder "dou um chute no saco!" Ele falava, decepcionado: "Não! ...Você corre, se você correr, ninguém nunca vai te pegar" e eu, contrariada porque não dera a resposta que ele queria completava, "tá bom, mas antes de correr eu dou um chute no saco!" Ele então aprovava. Eu nunca pensei que poderia me sentir tão vulnerável, tão mortal. Pensava que meu pais sempre me protegeriam. Cheguei em Niterói, e ainda sentia como se todas as pessoas em volta fossem me atacar subitamente. Tinha que ir ao banco. Havia duas mulheres sentadas nos degraus do Banco Real da praça do Rinque, e é claro que em vez de ir ao banco eu entrei na padaria. Pedi um suco de laranja que eu não queria tomar, mas ainda eram 7 horas e o curso só abriria às quinze para as oito. Logo chegou a Luciana na padaria também. Ela trabalha comigo e foi a primeira pessoa a saber do que quase aconteceu comigo. Ela me abraçou e ouviu. Ela já foi assaltada, mas teve menos sorte, o homem que a assaltou deu um soco no rosto dela. Eu já sabia dessa história, e sabia que era muito pior do que a minha. E depois de alguns minutos estávamos rindo das situações. Acho que isso só deve acontecer aqui no Brasil. Levamos tudo de um jeito tão leve, a violência nos é tão comum que rimos dela. Ter medo tornou-se corriqueiro, rotina, banal. Acho que a Saci-(minha amiga que me ajuda a perceber o que é normal e o que é coisa de brasileiro) nunca riria numa situação dessas. A Saci (lê-se: "shótsi") é Húngara, então para ela é mais fácil visualizar esses fenômenos culturais. Enfim, pensei um pouco nisso e fiquei um pouco chateada quando minha prima riu quando eu disse que gritei desesperada pela rua. Mas é compreensível. Afinal, não aconteceu nada. Pelo lado Polyanna-visualizando o lado positivo- fiquei feliz porque eu reagi e não congelei como sempre pensara que faria numa situação de perigo, fiquei feliz porque a voz saiu quando pensei que não sairia, e também porque agora tenho certeza que se ela viesse me agredir eu saberia me defender. Me defenderia como me ensinou o Mestre Murilo. No taekwondo há uma filosofia de nunca recuar perante o inimigo, o que é exatamente o oposto do que eu fiz, mas acho que foi a melhor solução...
Este relato é todo verídico, incluindo o sonho, e tudo aconteceu esta manhã. Agradeço a Deus por ter me dado a adrenalina necessária para correr tanto, a voz pra gritar igual a uma louca, e a maturidade para entender que isso foi um aprendizado, pois eu não vou mais pegar o 232 e vou passar a ser mais alerta, e dividir minhas coisas em vários bolsos. Além de usar menos relógio. E saber que há pessoas passando por coisas piores do que eu, que vão além da minha compreensão, como aquele olhar da mulher que queria tanto ver as horas no meu relógio. Era um olhar de malícia, de um mundo que eu não conheço, que não é "a minha realidade". Chamei-a de mulher o tempo todo, e pode parecer que ela é bem mais velha do que eu, mas ela deve ter mais ou menos 25 anos. Pensei muito nesse conceito de realidade. Do que é real para mim e não é real para ela. As coisas que ela não levou de mim. Que não são realidade. As coisas que ela não teve, e penso que eu queria, mas queria mesmo, que ela pudesse ter tudo o que eu tenho, e não fosse real para ela a vontade de tirar qualquer coisa de alguém. Queria que não fosse real para mim sentir tanto medo, e para ela causar tanto medo. É difícil entender, mas acho que ela não vê as coisas como eu vejo, ela não teve a oportunidade e nenhum incentivo para pensar um dia ser capaz de comprar o próprio relógio. A realidade é desigual, e está extremamente ligada à relatividade. Pensemos no certo ou errado e nas realidades relativas. É errado que ela queira roubar o meu relógio. Mas também é errado que ela não tenha condições de comprar um. É errado que eu tenha um e ela não. Estou falando de distribuição de renda, de desigualdade social, dessa nossa ideologia burguesa de que não há lugar para todos, de que temos sorte, de que ser pobre é carma e de que não há oportunidades, o que gera inveja e frustração. Vejo que haveria oportunidade se soubéssemos partilhar. Fecho o post então com uma pergunta: A culpa é de quem?

sábado, 10 de abril de 2010

Joana

Ela queria porque queria. Escreveu um poema sobre si, sobre o outro e tudo o que havia acontecido entre eles. Li o poema e sorri calado. Me incomodava, mas era pouco. Não sei se me apaixonei por ela ou pelos poemas, acho que foram os versos declamados saídos de sua boca volumosa e sorridente, dizendo coisas de sexo e beleza, os olhos doce-de-leite brilhantes, cor de âmbar e sempre espertos sorriam amores passados e orgulho dos seus versos.

A amei quando começou a declamar em público. E Joana não cabia em si, não se pertencia, pertencia a eles. A todos nós. A personalidade geralmente forte sucumbia aos elogios em sorrisos mudos. Um homem havia chorado por um poema, chorara por ela e agora a elogiava. Ela era um dos poetas mais respeitados do evento. Lembro de uma vez em que nos amamos e conversamos despidos de tudo. Ela tinha uma leveza em todas as ações, como se fosse natural, mas Joana era uma atriz. Nunca sabia se deveria acreditar nela. 

Sei que estava comigo porque queria, como também sei que houve vezes em que ela fingia que aquilo não era nada. Como se nada para ela fosse nada demais. Sempre que falava pouco era porque tinha milhões de pensamentos turvos. Às vezes acho que duvidava de mim. Eu sempre duvidava dela, daqueles olhos doces cheios de promessas que sua boca se negava a fazer. Ela sempre se fazia leve como música. Um dia sentei-me no meio fio da calçada. Era uma manhã fresca, com uma brisa leve e gelada, sentia-me vazio, até começar a ouvir uma canção. A música me preencheu, ainda estava só, mas nunca tão bem, em equilíbrio comigo mesmo. Joana era assim. Me invadia, e eu me fazia feliz ou melancólico conforme o ritmo em que cantava. Me era saudável vê-la feliz. Chorava como uma criança de modo a me desconcertar, desmanchava-se, destruía-me o seu rosto vermelho das lágrimas. As lágrimas e aquela outra coisa que existe no choro, substância invisível, que sufoca o peito, altamente contagiosa para mim. 

Ela era brisa leve, quando me levava para si. E era tornado. Parecia estar sempre cercada de rapazes e homens interessados, como se farejassem sua essência e desprezassem sua alma. Sempre achei que Joana flertava com o mundo, isso fazia bem para ela.Havia mil coisas que eu queria dizer, ela deitada no meu peito. "Você é especial, sabia?" eu pensava tanto nela, ainda penso. E foi só isso que eu disse. Como muitos homens poderiam ter dito, sem lirismo ou rimas, sem sonoridade, fato cru para quem escrevia poemas. Alguma coisa acontecia comigo. Eu tinha medo dela e de tudo que ela me causava. Essa força que ela tinha sobre o mundo, sobre a minha vontade. Ter força sobre a vontade do outro é infinitamente mais poderoso do que ter controle sobre ele.Não busco uma mulher como as pessoas fazem. Não listo qualidades que estimo, na verdade, isso não me importa, nunca me importou. Veja bem, não estou dizendo que ela não possuía qualidades que admiro, digo que Joana me levou porque me desconcertava. São raras as mulheres que admitem fazer sexo, quantas menos as que admitem gostar dele. E Joana tinha o cheiro da volúpia."Você é especial, sabia?" "É?" Ela disse. E sorriu.