domingo, 31 de maio de 2009

Passageiro

O 3° Lugar do Concurso de Contos do CALET (UERJ) 2008.
Passageiro

Muitos fatores os separavam. Os países, a cor, a cultura. Tudo que os formava individualmente os separava como casal. Um tempo, um momento os unira e o que os mantinha juntos era um amor flutuante. Sem raízes e sem rumo.
Ela sabia que ele não a acompanharia. Que estava no fim.
Dentro de algum lugar próximo e desconhecido havia uma multidão, um turbilhão de acontecimentos. Dentro de tudo que se sente existia uma criança. A menina tinha cabelos cacheados, e estava num vestido rosa de cetim. Um sorriso quase extinto do rosto. Ela caminhava pelos pequenos espaços pelos quais era possível se locomover. Era difícil passar. Tropeçava na multidão movimentada. Esbarrou em um homem alto, de terno cinza, que se virou para ela, confrontando-a.
Ele era velho e tudo em sua aparência, principalmente o olhar, latejava com estável severidade e inteligência. Parecia estar esperando por ela. Parecia ver e medir todas as pessoas ao redor. Tinha olhos que entendiam tudo. Era magro e eterno em sua existência. Saudável, tinha um cavanhaque grisalho e em meio a todos que os rodeavam era impossível ignorá-lo. Ela soube, ao vê-lo, que àquele homem ela teria de ouvir. Ele não disse nada, no entanto. Simplesmente olhou-a, e balançou a cabeça negativamente. “Você acha que eu tenho que ir embora, eu sei.” A menina disse, em voz miúda. Ele a olhou fundo nos olhos até que ela desviasse o olhar. “Você já está indo. Eu te venci.” Não havia rancor ou vitória, ele falava como um fato. A menina corou numa fúria infantilmente genuína. “Eu ainda tô aqui, não tô?” O homem parecia divertido, e com suavidade avaliou-a. “Você teve seu tempo aqui, e aposto que foi divertido para você me criar alguns problemas. Eu sinto muito, mas seu momento acabou”.
Havia um confronto acontecendo do lado de dentro. Podia sentir. Ela concluiu que gostava de amar. O amava tanto. Uma mensagem no celular: “estou com saudades.” Ele pensava nela. Sabia o quanto ela era especial, singular em sua beleza. O afeto entre ambos era óbvio. Suas diferenças, seus contrastes eram uma linha cinza. Ela precisava de atenção. De alguém que iria ligar pra ela, mandar mensagens, e fazer com que ela se sentisse especial a cada segundo, indispensável e amada a todo o momento. Ela precisava disso. Precisava dele presente, ali com ela.
Ele achava que ela queria demais. Coisa de mulher, não? Gostava dela. Gostava que ela fosse vê-lo. Gostava do cheiro dela, do corpo, da presença dela. A voz do outro lado do celular, a foto do outro lado do monitor. As mãos dela nas dele. Branco no preto como eles eram. Gostava de estar nela. Isso doía, não bastava.
Começou a se perguntar se estava sendo irracional. Talvez fosse demais. Era o que ela queria, ela queria e isso deveria ser importante. E não via mal algum em querer mais. Mais afeto, mais atenção, mais dele, mais ele. Ela pedia. Pedira mais de uma vez a ele para deixá-la. “Eu preciso de coisas que você não pode me dar. Você só me ama até onde acha necessário, e é conveniente pra você. Eu me sacrifico por você. Eu me esforço pra estar completamente com você. Você me faz mal nessa leveza que tudo tem pra você. Eu me sinto incompleta. Falta um pedaço de mim que está a centímetros de distância, e ainda sim não posso ter. Então deixa eu te deixar. Me deixa ir.”
Ele não compreendia porque era tão difícil. Ela se machucava tanto... “Eu estou aqui, com você, eu te amo. O que você me pede não faz sentido. Mas se você precisa disso para ficar feliz comigo é isso que eu vou te dar.”
Durava uma semana. Ela sentia algo a se frustrar. “Eu não sei o que estou sentindo direito, mas estou sentindo muito. Está acabando. Está indo embora.” Ela desejava desesperadamente que ele lutasse por ela, por eles. Oscilava entre o pensar e o sentir. Lutar sozinha era impossível.
E naquele turbilhão o senhor ainda observava a menina. Analisava. Ela ainda estava ali. O amor não fazia sentido. “Talvez eu fique um pouco mais”, disse ela. Era uma súplica. Nesse momento a multidão se abria a dar passagem a alguém e entre o velho e a criança postou-se um jovem. Bem ali, no centro de tudo que existia. Usava uma camiseta vermelho-forte, despretensiosa como ele era, mas exibia a luz inegável do que é novo, ele era cercado por uma expectativa, o velho não sabia bem de quê. O rapaz trazia uma singular felicidade. Diferente da menina, que simplesmente estava presente e olhava os próprios pés. O velho expirava razão e seriedade. Parecia desapontado.
Olhou o rapaz até saudá-lo com um sorriso mudo, e enquanto os três se confrontavam, avaliou-o calmamente. A expressão ilegível e cheia de significados. E mesmo ele, tão inteligente, se surpreendeu quando ao voltar os olhos para a menina, viu uma moça de cabelos lisos e curtos. O vestido rosa desbotara-se e o cetim tornara-se algodão. Ela olhava para si. Madura e sem brilho, o movimento natural da multidão foi levando-a devagar para longe dali. Ela sorriu com calma ao ser levada para as periferias do pensamento, onde ninguém mais se agitava.
E o velho acenou com a cabeça para o jovem, retirando-se também, pronto para a próxima batalha.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Girassol


Conto que fiz para minha irmã, dona de uns olhos um tanto particulares... Ainda tem algumas coisas nele que me incomodam, mas não sei muito bem o que. Espero que agrade. Qualquer crítica é bem vinda. Sem exageros, ok? Peguem leve. Abraço.


Girassol

Estavam finalmente juntos. Depois do tempo, o toque era completo, e satisfazia a ambos, como quando se come um doce que se deseja há muito. Olhavam-se e sorriam, estavam ali, e um era do outro. Podiam ser e agir com a certeza e a efemeridade que um momento curto promete. Ousar pela consciência da falta do tempo.
Ele estava com ela, afinal. E a começo. Na praia, sentados sob o sol que queimava a pele, ele segurava-a. As mãos nas costas, como a impedindo de cair, a trinta centímetros da areia. E podia realmente vê-la, ver a cor, sentir o cheiro, o sorriso. Era fácil e era bom.
Os olhos eram iluminados pelo sol. O castanho claro tornava-se alaranjado, quase amarelo, e a íris parecia uma camada de tinta sob uma superfície de vidro. Cores pastosas espalhavam-se envolta da pupila, como tinta a pincelar as pétalas de uma flor, iluminadas por luz solar. As íris de girassol. Linda.
Tinham pouco tempo, e ele se perguntava como esse pouco, esse pequeno tempo era tanto. Curto e intenso, e o momento era ela. Eles.
A imensidão breve os afogaria, talvez por isso pudessem ser o que queriam. Escolheram ser reais. O medo os deu sinceridade, o tempo os fez entregues como eternos se um para o outro. Os poucos dias durariam para sempre, tão breves que poéticos. Um imenso domingo ensolarado.
Antes eram e-mails e telefonemas. E não havia nada como ter o objeto de encanto nos braços. Em mãos. Mesmo que por um momento. A consciência de que era breve tornava tudo mais especial. Limitava a um. Os amantes eram abençoados pela perfeição do momento. Do romântico. Da falta de tempo para enxergar ou mostrar as rachaduras na pele de pedra de Vênus.
O que era real era ilusão: breve, belo, infinito de finito. Uma grande representação, o encanto já não cabendo em si. Felicidade gratuita. Muita.
Queriam estar para sempre. Mas o estar é ação temporária. Presente contínuo, finito. Queria estar para sempre. Claro. No momento em que não havia lugar para nada além do deslumbramento. O vislumbre da perfeição. Deveria ser sempre assim. Pois tudo vale muito mais por não estar sempre presente. Um momento era ela, ele. E a vida que vale a pena é feita de momentos costurados um no outro.
Ele a costurava a si. Talvez por um segundo, talvez para sempre, não se importava com o tempo, mas com o pedaço que ela era. Porque ela era algo. Uma parte. E o encantava com seus olhos furta-cores, talvez por serem castanhos, por serem alaranjados, amarelos, talvez pela mudança contínua que o sol orquestrava, talvez pelo formato de flor. Ele sorriu.
Não sabia para onde iam, e via que ela também não. Preocupavam-se com a paisagem, sem destino prévio. E a paisagem era a de um dia ensolarado, as flores mirando o sol.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Humana


Sentiu alguma coisa. Lera que os preguiçosos sentiam uma vontade estranha de fazer algo, mas não sabiam o quê. Não era vontade de fazer algo, era uma vontade de não fazer nada. Isso a fazia mais ou menos preguiçosa então? Depois dos feriados se sentia assim, um pequeno tempo sem fazer nada e estava convencida a deitar e dormir numa extensão eterna. Hibernar. Talvez acordasse descansada. Talvez não. Talvez seus músculos se atrofiassem e ela ficasse presa na exaustão para sempre. Inércia. Lera também um conto chamado A Primeira Lei de Newton. Lembrava que gostara muito. Mas não era ela. Gostava mais da terceira lei. Ação e Reação.
Se um corpo A aplica uma determinada força em B, receberá deste uma força de mesma intensidade, mesma direção e parava de prestar atenção nesse exato momento... Mesmo o quê, hem? Mesma direção... E sentido oposto...? Não era boa nas exatas, apesar de que não parecia muito complicado. Simples, exato. Mesma intensidade... Sentido Oposto. Não era ladainha da dona da loja de produtos esotéricos, era física agora. Era mais fácil acreditar na física. Lançaria seus planos no universo e isso desencadearia um resultado. Isso tinha a ver com a dona da loja de produtos esotéricos.
Tudo o que ela possuía de diferente e a fazia única e especial estava nos planos que tinha. Os planos eram forças. A impulsionavam para frente. Será que ao projetar força em direção aos seus objetivos eles a empurravam de volta? Mesma força. A contra B. Empate. Inércia? Três leis que se contradiziam, como as leis da robótica no filme?
Empurrou o caderno em que escrevia palavras pesadas. O caderno se moveu. Ação e reação nunca se anulam, agem em corpos distintos. A podia mover B. Não era força, mas corpo. Muitos fatores determinavam o que aconteceria com A e B. Socar uma parede não moveria a parede. A parede devolveria a força. Bem feito. Nunca soque uma parede.
Quanto mais movimento, mais se movimentava. Mais disposição, menos tempo. Queria ler mais livros, estudar mais, dormir um pouco mais. Trabalhava sábado. Que droga trabalhar no sábado. E ouvira: Mas sabia que quando eu morava nos Estados Unidos eu trabalhava todos os dias, sábados, domingos, feriados, em casa... Essa coisa de não trabalhar no sábado é coisa de brasileiro. Curioso. Soltou dos pulmões um breve “hum”. Coisa de brasileiro. Não sei não. Sempre morou no Brasil. Que droga trabalhar no sábado. Que droga morar no Brasil. Isso era um princípio relativo. Tinha a ver com o referencial. Tinha a ver com geografia.
Tempo e espaço. Einstein. Ele tinha cara de louco, Aquele cabelo despenteado, de aspecto sujo a incomodava. Não fazia sentido apostar em teorias que eram tão invisíveis a seus olhos. Preferia teorias mais facilmente comprováveis como a de Edward A. Murphy.
Precisava comprar um incenso.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

O nó


Você sente uma dor tão aguda que não cabe em seu âmago, ela toma todo o seu corpo e parece se expandir como uma nuvem. Densa como uma nuvem. Você pensa “escreva a dor”, e escrever não parece fazer o menor sentido, “fodam-se as palavras”. É tudo um teatro, umas palavras bonitas. Nada como sentir a dor, o espatifar de alguma coisa dentro de você que você não sabe o que é. Alguma coisa quebrou. Como um copo pesado que estilhaça em duzentos pedaços que socam o resto do peito. E tudo dói.
O choro pesa como pesam as palavras que escorrem forçosamente para baixo da garganta. Elas caem lentamente se arrastando pelas paredes provavelmente vermelhas que existem na parte de dentro do seu pescoço, depois da sua boca. Você engole e a dor vai pra lá. Respirar incomoda e existir incomoda. A cabeça dói. E você aperta os olhos, os lábios tremem.
Sua aparência deve ser horrível. A dor é feia. Ela sai, está do lado de fora como está por dentro, e palavras voam por sua mente, que merda todas essas palavras. Na sua cabeça Clive Owen te diz que o coração é um punho coberto de sangue. Tão coerente.
Você segura a respiração e essa forma arredondada que parece estar na sua garganta, acha que tem controle sobre ela. Mas ela não vai embora e é difícil entender. E você tampa a boca pro choro não sair, pra não ganir como um cão, para ninguém escutar a sua dor.
É injusto que essa dor exista. Ela existe pra você, é só sua. Tudo que aconteceu em toda a sua vida parece caminhar para esse momento, essa angústia pesada que te deixa com dor de cabeça, de tanto que você se segura pra não chorar, ou não chorar mais do que já chora. O seu corpo chora por inteiro, e você está sozinho. É tudo para você. Você precisa gritar, mas não grita. Não chora. Não gane como um cão, afinal.
Você respira enquanto o seu corpo treme e os seus olhos se inundam de lágrimas que você não convidou. Vai passar. Você ofega sem querer. Se xinga por dentro: “pára, porra! Pára de chorar” e vai passando. O seu peito ainda pesa duas toneladas, sua cabeça ainda dói. Você pensa na dor e alguma coisa sobe de volta a sua garganta, os lábios tremem, mas você os controla. Vai passar. Os olhos cheios de lágrimas. Vai passar. A dor de cabeça, a dor invisível que te aperta o coração, um punho fechado e vermelho o apertando. Você está coberto de sangue, não vê mas sente. O rosto está vermelho, quente com todo aquele sangue. Vai passar.