segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Fracassos e Vitórias

Me pergunto hoje o que seria vencer na vida. Ser emergente? Rico? Respeitado? Famoso?
Penso nas pessoas que gritam pelos cantos suas pequenas ou grandes vitórias necessitadas de afirmação: "Eu venci". Penso em como suas vitórias me parecem estáticas, findas, pós linha de chegada. A vitória me parece individual, tudo depende da sua concepção de vitória. Na república em que moro, uma vez tive um colapso nervoso a respeito de limpeza, ao dizer que estava acostumada a viver em um lugar limpo, me responderam: "Depende da sua concepção de limpo." "EXATO!" Eureca! Na minha concepção de mundo não existem níveis de limpeza, a limpeza é completa. Algo está limpo. Existem níveis sim, de sujeira, que variam do sujo ao imundo. Não é uma coisa simétrica. Friso aqui meus limites. Só posso enxergar o que eu conheço. O desconhecido não se reconhece. Contei este episódio já resolvido para ilustrar o termo "concepções".
A tal Vitória, que, em português é nome de mulher- sim, a Vitória é feminina e mora no andar de baixo, no térreo- não é a mesma mulher para todos. O que é vitória para você? Me perguntei o que é vencer, na minha vida, para mim, hoje. Penso na tal linha de chegada, mas não tenho nem ideia de quando começarei a vê-la no horizonte. Não há linha. Há pequenas coisas, minhas vitórias são textos que termino de ler para a próxima aula. São listas de supermercado e roupas lavadas. Aulas que terminam, textos que corrijo e recorrijo até devolvê-los teoricamente limpos.
Minhas vitórias consistem em dormir cedo. Vencer as aulas de sábado. Falar com meu pais por telefone. Conversar com meus amigos, descobrir coisas que não sabia, que alguém desperta em mim. Sinto informar-lhe, caro leitor, que você não está lendo um texto conclusivo que definirá o que é Vitória, ou o que lhe trará felicidade, porque... adivinhe só: Depende da sua concepção de Vencer. Creio que minha maior vitória, ou segunda maior, depois de lavar minhas roupas no sábado, foi me transformar em uma pessoa da qual sinto orgulho. Saber que eu estou no caminho certo.
Tudo aconteceu quando descobri o que eu queria. Meu sonho de criança e pré-adolescente que assiste seriado era morar em república, fazer faculdade, dar aula e não pedir um real para os pais, para finalmente fazer o que queria. Mais ou menos um ano depois que comecei a dar aulas, tive uma experiência incrível, quase religiosa. Estava dando aula de reforço de nível básico, ensinando os pronomes possessivos, e o auxiliar TO DO, quando me veio uma visão paralela à aula. Eu, Luiza, saí da minha perspectiva de Teacher Luiza e me vi Teacher Luiza, com os olhos da sonhadora Luiza em seu mundo de 12 ou 13 anos. Ela me viu -digo ela porque não mais a sou- e sentiu orgulho de mim e de si ao mesmo tempo, porque eu era ambas. "Era isso que eu queria." Nós concluímos. Quisemos muito e fomos em frente.
Minha realidade é morar em república, fazer faculdade, dar aula e não pedir um real para os meus pais, para fazer o que eles me pedem com boa vontade.
Me lembro que sempre tive inveja dos viajantes, sem raízes, mochila nas costas e pés no mundo. Era isso que eu queria. Juntei minha grana e fiz uma viagem cheia de expectativas, cheia de apoio dos que me amavam, com a mochila nas costas e os pés no mundo. Foi quando vi que foram as raízes que me deram força para crescer em direção ao céu. Minha mãe forte, meu pai equilibrado. Quero a força dela, o equilíbrio dele. São as minhas vitórias. As amo e por isso as romantizo, o mundo que eu vejo é colorido. Não nego o cinza que vejo todos os dias na água da baía de Guanabara. Não o ignoro, mas vejo as cores claras fluorescentes e vitoriosas. Tento fazer o melhor que posso com as cores que tenho. Hoje minhas vitórias são listas de supermercado, já que estou cumprindo um objetivo dentro de outro e dentro de outro, as pequenas vitórias embasam e tornam palpáveis os grandes sonhos.
Hoje quero ser forte para ajudar uma amiga, emprestar para ela a força que é de minha mãe, e minha, que não ligo de dividir, porque me sobra e vem de fonte inesgotável. Quero dizer a ela que ela pode contar comigo, definir para mim o que é contar com alguém, que não sei o que é exatamente. Saber que estarei aqui, ser uma raiz. Isso por hoje. Quem sabe qual será a maior vitória do mundo amanhã?

sábado, 5 de setembro de 2009

Perversa

Matara a outra. Sentiu o sangue pegajoso entre os dedos. Sentiu e o deixou pingar espesso no carpete. O peito subia e descia, expirando ar exausto e tenso enquanto olhava sua vítima no carpete, sua inimiga. Desonesta, orgulhosa, desagradável, mentirosa, invejosa. Ainda sentia raiva, o punho fechado apertava a faca que parecia completar sua mão. Sempre estivera ali. A morte não era o suficiente, não se sentia vingada. O que faria? Não comeria a carne, não se envenenaria com o sangue daquele monstro.
Lembrou-se da sensação de empurrar a faca contra a pele da barriga flácida da outra até que se rompesse numa explosão vermelha e quente. Não sabia que era tão simples assim. A pele era uma coisa frágil afinal. Lembrou-se do sangue de um vermelho impossível a manchar e sujar-lhe as mãos e roupas. Sentiu ódio. Estava contaminada.
Sentia nojo até mesmo de apertar sua mão em cumprimento quando necessário. Agora não precisaria mais. Mas ainda não havia terminado. O que faria? Deveria ter planejado, já que não sentia nenhum remorso. Era decidida e livre. Matara por impulso, por inspiração divina. Era seu destino ter aquela víbora morta em seu carpete. Mais um motivo para substituí-lo. Que coisa improvável. Ela já fizera comentários a respeito daquele mesmo carpete. Foi Deus que pôs a faca sobre a mesa da sala. E ela tinha ido pedir um favor. Que descaramento! Pedira sem qualquer inibição por favores que não lhe interessavam. E na sua casa!
Oportunista! A criticava por tudo e agora lhe invadia o espaço sagrado que era o lar. Trouxera sua presença, peso e memória a incomodar o seu refúgio. Que audácia! Odiava cada célula do corpo da morta, cada palavra que lhe saíra da boca e que ainda ecoava no silêncio póstumo. Cada segundo que era obrigada a ficar ao seu lado. Ela lhe pedira um favor! Sorriu com a situação absurda.
“Preciso de ajuda e não tenho mais ninguém” −É claro que não tinha mais ninguém.
“Não.” − E Sorriu com o canto da boca. Sentia-se à vontade para dizer não. Estava em seu território.
“Como não?” − Ela começou a se exaltar, era uma descontrolada que ainda desconhecia a palavra de três letras e um acento. Começou com insultos, que as duas trocaram afiadas, e voavam dardos verbais de um lado a outro da sala. Gritaram ofensas e gesticularam ameaças, uma avançou em direção à outra. Duas serpentes, com o peito estufado e o queixo empinado em desafio. A agressão verbal não era suficiente. Sentiam o ódio ferver nas veias e envenenar o sangue. Eram primitivas, animais, eram carne, ódio e osso.
Foi com os dentes trincados que pegou a faca e perfurou a mulher que já tinha o corpo encostado ao seu, os braços debatendo-se como se fossem dezenas. A mulher ofegou sugando o ar quando esfaqueada. Estava absurdamente surpresa. Não esperava aquilo, a subestimara como sempre. Assassina!
Afundou a faca e sorriu ao observar a outra arregalar os olhos castanho-escuros e morrer aos poucos aos poucos em um silêncio incrédulo. Nunca a ameaçara de morte. Ambas sentiam somente um ódio imensurável e até então inofensivo.
Quando ela caiu no carpete, a outra se viu, finalmente, assassina. Mas não sentia isso. Era a vencedora de um duelo. Olhou para a inimiga derrotada e sentiu uma gota de orgulho. Não baixou a cabeça, somente os olhos para mirar a outra e viu o sangue se espalhar. A morte não era necessária, mas lhe trazia paz. Tinha um gosto bom. Sentia-se a livrar o mundo de um mal. Era uma heroína.
Sentiu os olhos saírem de foco. Piscou pesadamente, voltando a si. Há quanto tempo ficara ali parada? O sangue secara em suas mãos. Grudara em suas unhas. Sentiu asco.
Foi à cozinha e limpou-se com álcool. Pensou em como se livraria do corpo. Cortou o pescoço morno e deixou o resto do sangue escorrer para o carpete que o absorvia sedento. Se livraria dele sem respingos. Uniu forças para levantar a mulher e arrastá-la até o carro. Estava seca em dois sacos de plástico pretos. Um pela cabeça, o outro pelas pernas. Parecia sua árvore de natal no depósito.
Dirigiu com calma e responsabilidade até o lugar ideal para ela. No lixão os cabelos, a pele e o carpete queimavam como folhas secas, cobertos de álcool.
Voltou para casa cansada. Precisava de um banho, mas antes lavou a faca e a pôs de volta no faqueiro. Especulou sobre o fato de encontrar a faca na sala. Deus − pensou. Fez uma prece e dormiu um sono pesado.
Acordou com um telefonema da mãe. Ela perguntava por sua prima. Disse que a vira no dia anterior, que conversaram e depois ela tinha ido embora.
“Ela não disse aonde ia?”
“Não.”
“Estamos todos muito preocupados.”
“Mãe, se acalme. Deus sabe o que faz.”
“Não, você não está entendendo!”
O marido estava preocupadíssimo com ela, eles descobriram que estava grávida e falava em suicídio. Ela disse que não era o momento e, segundo o marido, estava confusa e desequilibrada Tinham de encontrá-la.
“Ela não mencionou nada? Sobre o que vocês conversaram?”
“Roupas.”
A mãe não respondeu. Ela continuou a falar, menos fria. “Mãe, se eu souber de alguma coisa eu te ligo”. Vou ver o que posso fazer.
Estava com sono, e desligou o telefone. A conversa toda parecia surreal. Lembrou-se da imagem de sua prima vazando sangue no carpete. Suicídio? Seria um bem para a humanidade.
Levantou-se e foi até a cozinha comer algo. Ficou confusa quando viu que no faqueiro havia duas facas. A sua não havia sido tirada de lá.