Mostrando postagens com marcador duelo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador duelo. Mostrar todas as postagens

sábado, 5 de setembro de 2009

Perversa

Matara a outra. Sentiu o sangue pegajoso entre os dedos. Sentiu e o deixou pingar espesso no carpete. O peito subia e descia, expirando ar exausto e tenso enquanto olhava sua vítima no carpete, sua inimiga. Desonesta, orgulhosa, desagradável, mentirosa, invejosa. Ainda sentia raiva, o punho fechado apertava a faca que parecia completar sua mão. Sempre estivera ali. A morte não era o suficiente, não se sentia vingada. O que faria? Não comeria a carne, não se envenenaria com o sangue daquele monstro.
Lembrou-se da sensação de empurrar a faca contra a pele da barriga flácida da outra até que se rompesse numa explosão vermelha e quente. Não sabia que era tão simples assim. A pele era uma coisa frágil afinal. Lembrou-se do sangue de um vermelho impossível a manchar e sujar-lhe as mãos e roupas. Sentiu ódio. Estava contaminada.
Sentia nojo até mesmo de apertar sua mão em cumprimento quando necessário. Agora não precisaria mais. Mas ainda não havia terminado. O que faria? Deveria ter planejado, já que não sentia nenhum remorso. Era decidida e livre. Matara por impulso, por inspiração divina. Era seu destino ter aquela víbora morta em seu carpete. Mais um motivo para substituí-lo. Que coisa improvável. Ela já fizera comentários a respeito daquele mesmo carpete. Foi Deus que pôs a faca sobre a mesa da sala. E ela tinha ido pedir um favor. Que descaramento! Pedira sem qualquer inibição por favores que não lhe interessavam. E na sua casa!
Oportunista! A criticava por tudo e agora lhe invadia o espaço sagrado que era o lar. Trouxera sua presença, peso e memória a incomodar o seu refúgio. Que audácia! Odiava cada célula do corpo da morta, cada palavra que lhe saíra da boca e que ainda ecoava no silêncio póstumo. Cada segundo que era obrigada a ficar ao seu lado. Ela lhe pedira um favor! Sorriu com a situação absurda.
“Preciso de ajuda e não tenho mais ninguém” −É claro que não tinha mais ninguém.
“Não.” − E Sorriu com o canto da boca. Sentia-se à vontade para dizer não. Estava em seu território.
“Como não?” − Ela começou a se exaltar, era uma descontrolada que ainda desconhecia a palavra de três letras e um acento. Começou com insultos, que as duas trocaram afiadas, e voavam dardos verbais de um lado a outro da sala. Gritaram ofensas e gesticularam ameaças, uma avançou em direção à outra. Duas serpentes, com o peito estufado e o queixo empinado em desafio. A agressão verbal não era suficiente. Sentiam o ódio ferver nas veias e envenenar o sangue. Eram primitivas, animais, eram carne, ódio e osso.
Foi com os dentes trincados que pegou a faca e perfurou a mulher que já tinha o corpo encostado ao seu, os braços debatendo-se como se fossem dezenas. A mulher ofegou sugando o ar quando esfaqueada. Estava absurdamente surpresa. Não esperava aquilo, a subestimara como sempre. Assassina!
Afundou a faca e sorriu ao observar a outra arregalar os olhos castanho-escuros e morrer aos poucos aos poucos em um silêncio incrédulo. Nunca a ameaçara de morte. Ambas sentiam somente um ódio imensurável e até então inofensivo.
Quando ela caiu no carpete, a outra se viu, finalmente, assassina. Mas não sentia isso. Era a vencedora de um duelo. Olhou para a inimiga derrotada e sentiu uma gota de orgulho. Não baixou a cabeça, somente os olhos para mirar a outra e viu o sangue se espalhar. A morte não era necessária, mas lhe trazia paz. Tinha um gosto bom. Sentia-se a livrar o mundo de um mal. Era uma heroína.
Sentiu os olhos saírem de foco. Piscou pesadamente, voltando a si. Há quanto tempo ficara ali parada? O sangue secara em suas mãos. Grudara em suas unhas. Sentiu asco.
Foi à cozinha e limpou-se com álcool. Pensou em como se livraria do corpo. Cortou o pescoço morno e deixou o resto do sangue escorrer para o carpete que o absorvia sedento. Se livraria dele sem respingos. Uniu forças para levantar a mulher e arrastá-la até o carro. Estava seca em dois sacos de plástico pretos. Um pela cabeça, o outro pelas pernas. Parecia sua árvore de natal no depósito.
Dirigiu com calma e responsabilidade até o lugar ideal para ela. No lixão os cabelos, a pele e o carpete queimavam como folhas secas, cobertos de álcool.
Voltou para casa cansada. Precisava de um banho, mas antes lavou a faca e a pôs de volta no faqueiro. Especulou sobre o fato de encontrar a faca na sala. Deus − pensou. Fez uma prece e dormiu um sono pesado.
Acordou com um telefonema da mãe. Ela perguntava por sua prima. Disse que a vira no dia anterior, que conversaram e depois ela tinha ido embora.
“Ela não disse aonde ia?”
“Não.”
“Estamos todos muito preocupados.”
“Mãe, se acalme. Deus sabe o que faz.”
“Não, você não está entendendo!”
O marido estava preocupadíssimo com ela, eles descobriram que estava grávida e falava em suicídio. Ela disse que não era o momento e, segundo o marido, estava confusa e desequilibrada Tinham de encontrá-la.
“Ela não mencionou nada? Sobre o que vocês conversaram?”
“Roupas.”
A mãe não respondeu. Ela continuou a falar, menos fria. “Mãe, se eu souber de alguma coisa eu te ligo”. Vou ver o que posso fazer.
Estava com sono, e desligou o telefone. A conversa toda parecia surreal. Lembrou-se da imagem de sua prima vazando sangue no carpete. Suicídio? Seria um bem para a humanidade.
Levantou-se e foi até a cozinha comer algo. Ficou confusa quando viu que no faqueiro havia duas facas. A sua não havia sido tirada de lá.